A corrida espacial pode parecer um desafio puramente técnico, relacionado apenas ao universo da tecnologia e da engenharia. Historicamente, a arquitetura do espaço esteve focada principalmente no desenvolvimento de projetos para estações espaciais ou bases não tripuladas para a exploração de outros planetas, quase sempre encomendados e financiados pelas principais agências espaciais como a ESA (Europa) ou a NASA (EUA). Entretanto, ao longo dos últimos anos, esta tendência tem começado a mudar. A corrida espacial tem atraindo um espectro cada vez maior de profissionais (como arquitetos e sociólogos), bem como uma variada gama de diferentes empreendedores e investidores (nem sempre bem-intencionados). Diversas áreas do conhecimento estão juntando forças por um interesse em comum: a nova corrida espacial.
São diversos fatores que têm contribuído para esta mudança: o desenvolvimento de novas tecnologias, o crescente aumento da população mundial e as crises climáticas que a cada ano se tornam mais frequentes. Estas condições desfavoráveis acabaram por criar um cenário perfeito para que os seres humanos voltassem a se interessar pela vida no espaço, não apenas como uma solução, mas como uma urgência. A medida que essa tendência continua a ganhar força, novas possibilidades começam a aparecer (NEOM), bem como novas organizações de apoio à pesquisa espacial (como a SATC e a SICSA). Embora ainda não tenhamos botado o pé em Marte sequer uma única vez, há pelo menos uma dezenas de projetos em andamento que pretendem estabelecer colônias humanas no planeta vermelho (tenhamos como exemplo o projeto MARS-ONE ou o Mars City Science).
Na conferência Architecture of the Future, realizada este ano na cidade de Kiev, tivemos a oportunidade de conversar com alguns dos principais escritórios de arquitetura do mundo todo para saber mais sobre quais são os desafios mais urgentes a serem considerados quando se trata de projetar estruturas no espaço. Paralelamente a isso, não são poucos os arquitetos que encaram esta "urgência" com certo ceticismo. Para um grande número de profissionais da arquitetura e áreas afins, deveríamos nos preocupar -antes de mais nada- em resolver os problemas do nosso próprio planeta, problemas que nós mesmos criamos, ao invés de projetar ideias -até certo ponto utópicas- de como habitar outros planetas. Por outro lado, há aqueles que vêem a vida no espaço como uma grande oportunidade para o desenvolvimento de novas tecnologias que não apenas serviriam à colonização do espaço, mas que poderiam nos trazer novas soluções para lidarmos com os nossos velhos e recorrentes problemas.
Para aqueles que estão trabalhando diretamente com essa questão, podemos contar seis principais problemas que devem ser solucionados quando se trata de projetar estruturas arquitetônicas interplanetárias:
1. Eficiência hídrica
Falando sobre seu protótipo de "cidade marciana" desenvolvido para a cidade de Dubai, Bjarke Ingels fez uma comparação bastante pertinente quando se discute a vida em outros planetas: enquanto a Terra dispões de um total de 1,5 bilhão de metros cúbicos de água, Marte, por exemplo, conta com apenas 5 milhões. Por isso é necessário desenvolver sistemas incrivelmente eficientes no que se refere ao uso e reuso da água. Em Marte não há água potável, ela deveria ser tratada depois de um processo de aquecimento do solo congelado que separaria a água do solo. Segundo Ingels, parte dessa água deveria ser armazenada para consumo humano enquanto que outra parcela deveria ser utilizada para a produção de oxigênio.
Isso nos obrigaria a repensar todos os nossos processos relacionados à água, desde as coisas mais básicas, como a água potável para consumo, até processos secundários, como o uso na agricultura (que também deveria ser mais eficiente pela menor quantidade de superfície cultivável disponível) ou a criação de animais (o alto consumo de água na produção de carne praticamente eliminaria esta possibilidade). A construção civil também seria afetada pois tradicionalmente, a água é um elemento fundamental no canteiro de obras, e finalmente, o tratamento e reutilização da água passaria a ser um processo mais simples que a retirada de água do terreno.
2. Energias renováveis
Em Marte, não existem combustíveis fósseis (uma vez que não existem fósseis); portanto, todas as fontes de energia em Marte devem ser renováveis. Energia solar, energia eólica e nuclear seriam possíveis alternativas energéticas aos nossos tão conhecidos combustíveis fósseis. O projeto da unidade de sobrevivência MARS-ONE é um dos projetos que tem demonstrado um certo nível de preocupação com a questão energética, definindo diretrizes de como capitalizar os recursos energéticos disponíveis em Marte. A MARS-ONE propõe a captação e produção de energia elétrica a partir de sistemas fotovoltaicos em forma de filmes flexíveis, os quais poderiam ser enrolados e transportados facilmente de um lugar para o outro.
3. Ambientes extremos: alta radiação, baixa pressão e baixas temperaturas
Todos sabemos que as condições atmosféricas em Marte são pra lá de extremas; não há oxigênio suficiente na atmosfera, pouca gravidade se comparado com a Terra além do campo magnético e uma atmosfera muito fina, o que resulta em níveis altíssimos de radiação.
Do ponto de vista arquitetônico, é preciso conceber estruturas capazes de criar micro-atmosferas, espaços suficientemente estanques para poder sustentar oxigênio e que possam proteger os seres humanos da alta radiação na superfície do planeta vermelho. Existem quatro tipologias de estruturas habitáveis que parecem fornecer as melhores soluções para a colonização de Marte: estruturas rígidas construídas em metal ou plástico, estruturas expansíveis, túneis subterrâneos e estruturas maciças, edificadas com tijolos e pedras.
O processo de construção por si só já parece ser muito complicado e até certo ponto, perigoso. A superfície da Lua, por exemplo, é coberta por uma fina camada de poeira, composta por grãos microscópicos e pontiagudos que podem perfurar os pulmões dos astronautas caso sejam inspirados profundamente ou por um longo período de tempo. Esse pó pode ser magnetizado e assim ser atraído pelos equipamentos e trajes espaciais, o que faria a construção na Lua algo praticamente impossível de lidar. Por essa e tantas outras razões, a construção no espaço é algo que parece ser possível apenas com o auxílio de robôs.
Há alguns anos, a Foster + Partners desenvolveu um projeto de base lunar para quatro pessoas, uma estrutura concebida para ser construída, ou melhor, impressa em 3D, apenas através de robôs e em forma de cúpula inflável. Esta concha, de estrutura celular oca, foi inspirada em sistemas biológicos naturais, a qual serviria para proteger os habitantes das possíveis quedas de meteoritos, da radiação gama e da altíssima amplitude térmica da Lua. Com tecnologia desenvolvida pela AI SpaceFactory, a estrutura projetada pela Foster + Partners utilizaria materiais lunares e disponíveis no local como matéria-prima para a impressão destes edifícios. O uso de recursos locais, juntamente com sistemas autônomos de construção, permitiria que estes edifícios fossem construídos em etapas, com segurança e eficiência. Caso queira saber mais sobre este projeto assista a entrevista completa com um dos cofundadores do projeto aqui.
4. Recicle tudo (não pode haver desperdício)
Outro grande desafio em relação ao projeto e construção de estruturas arquitetônicas no espaço, é pensar em maneiras alternativas de como utilizar e reutilizar os recursos disponíveis. Devido à quantidade de energia necessária para mover qualquer coisa no espaço, o desperdício deverá ser minimizado senão, extinto do nosso vocabulário. Tudo deve ser milimetricamente planejado para que cada passo seja o mais eficiente possível. Isso significa que precisamos pensar do início ao fim como um ecossistema integrado, algo parecido já encontramos nas teorias de economia circular, além de que a construção deverá ser livre de resíduos e desperdício zero.
5. Minimizando custos: construção automatizada, materiais locais e robótica
Em ambientes extremos não se pode desperdiçar dinheiro. Devemos planejar tudo nos mínimos detalhes, utilizar materiais disponíveis no local além de aplicar todas as tecnologias disponíveis para minimizar custos e tornar os processos de construção mais eficientes. Se considerarmos que para transportar até a lua cinco toneladas teríamos que investir cerca de cem milhões de dólares, e que uma casa média pesa em torno de cinquenta toneladas, o custo de uma estrutura como esta seria de aproximadamente um bilhão de dólares - sem falar que seriam necessárias dez viagens de ida e volta à Lua para dar conta do recado. Para por em perspectiva, cinquenta robôs automatizados possuem o mesmo peso de uma casa, e esta infraestrutura poderia servir para construir muitas casas com o mesmo investimento inicial.
O projeto Mars Colonization, desenvolvido pela ZA Architects, propõe a utilização de robôs autônomos movidos a energia solar para escavar moradias no solo de Marte antes de que as pessoas sejam deslocadas para o planeta. Além de escavar o solo rochoso de Marte para dar forma a espaços habitáveis, estes robôs também são capazes de costurar estruturas têxteis feitas a partir de fibras de basalto que seriam utilizadas como plataformas para dar forma aos pavimentos que organizariam os espaços dentro destas cavernas rochosas.
Em testes desenvolvidos para a NASA, a AI SpaceFactory descobriu um tipo de biopolímero super resistente criado a partir do basalto. Materiais como este, encontrados em abundância em nosso planeta, poderiam se tornar em breve alternativas ao concreto e o aço, o que reduziria em até um 9% as emissões anuais de carbono.
Para saber mais detalhes sobre estas novas descobertas, estruturas e tipologias, acesse aqui a tese de doutorado de Joanna Kozicka, um trabalho inteiramente dedicado aos principais desafios serem enfrentados quando se trata de projetar edifícios em outros planetas.
6. Habitabilidade
Como Joanna Kozicka afirma claramente em sua tese de doutorado, ambientes fechados e/ou isolados causam um enorme impacto sócio-psicológico em seres humanos, resultando em doenças fisiológicas e psicológicas, as quais variam de dores de cabeça e distúrbios no sono até colapsos emocionais. Estudos científicos nos mostram que soluções arquitetônicas podem impactar positivamente no bem-estar de pessoas em situações de isolamento ou confinamento. Os elementos mais importantes são: boas condições de iluminado natural, eixos visuais e visibilidade, contato com a natureza, espaços flexíveis e bem arejados. Além disso, estes ambientes devem segregar espaços barulhentos de silenciosos, bem iluminados de escuros, público e privado, áreas de trabalho e áreas de estar.
Outra empresa que tem se dedicado muito neste sentido é a Spacecraft, a qual tem desenvolvido soluções centradas na habitabilidade dos espaços (como por exemplo as micro-sociedades) para melhorar a qualidade de vida das pessoas com base no uso de novas tecnologias. A Spacecraft desenvolve desde jogos interativos para astronautas até projetos de estufas para o cultivo de alimentos em outros planetas. A Moon Walker, por exemplo, é uma base lunar ambulante projetada para que o espaço e seus elementos espaciais estejam intimamente relacionados ao comportamento humano. Felizmente, já estão sendo testadas inúmeras propostas de espaços habitáveis antes mesmo de pensarmos em enviá-las para o espaço. Para alcançar melhores resultados estes testes tem sido feitos em locais análogos encontrados na Terra, como na Antártica, em áreas desérticas, subterrâneas e submarinas.
Me parece que os mesmos princípios e os mesmos sistemas que nos permitiriam viver em outros planetas poderão também nos auxiliar a encontrar soluções para os problemas que enfrentamos em nosso próprio Planeta .
Bjarke Ingels
Saiba mais sobre o trabalho desenvolvido pela GENSLER, Woods Bagot, Rat [LAB] e AI SpaceFactory, e como os principais escritórios de arquitetura do mundo estão lidando com o desafio de construir no espaço neste vídeo:
Não são poucos os desafios que devemos enfrentar quando se trata de construir estruturas habitáveis extraterrestres, e mesmo que pareça uma abordagem completamente sem sentido quando existem tantos problemas a serem resolvidos em nosso próprio planeta, novas descobertas podem nos auxiliar, e muito, na busca por novas soluções para os nossos velhos problemas.